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Patrimônios Difíceis

Os patrimônios difíceis (sombrios, da dor, ou dissonantes) remetem-se a um recordar excluído do consenso ordinário que liga o patrimônio cultural apenas ao belo e ao bom. Direcionam-se a memórias sombrias, obscuras, ligadas a histórias que se prefere – consciente ou inconscientemente – não lembrar. Heranças desajeitadas de passados que não passam. Lugares, memórias e vestígios relativos a eventos históricos traumáticos, atravessados por violações de direitos humanos, precarização da existência e lembranças marcadas por experiências traumáticas, associados a políticas de memória que instituem vontades de esquecimento, são frequentemente acionados por grupos preocupados em reativar, denunciar e reatualizar as memórias ligadas a tais episódios e/ou instituições.

Para saber mais:

  • LOGAN, William e Reeves, Keir. (Orgs.). Places of pain and shame. Dealing with difficult heritage. London/New York, Routlegde, 2009.
  • Macdonald, Sharon. Difficult heritage: negotiating the Nazi past in Nuremberg and beyond. Estados Unidos: Routledge, 2009.Sobre patrimônio prisional e a memória dos presos comuns:
  • MENEGUELLO, Cristina. Patrimônios difíceis. In: CARVALHO, Aline. MENEGUELLO, Cristina. (Orgs). Dicionário temático de patrimônio cultural. Debates contemporâneos. São Paulo: Ed. Unicamp, 2020.
  • TUNBRIDGE, John E; ASHWORTH, Gregory John. Dissonant Heritage: The Management ofmthe Past as a Resource in Conflict. Londres: Belhaven Press, 1996.
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Patrimônios Marginais

A categoria patrimônio marginal é aqui configurada para problematizar lugares e experiências vinculados a instituições de sequestro social, as quais dificilmente são reivindicadas por aqueles diretamente envolvidos. Tampouco, estes locais e memórias são reclamados por familiares, uma vez que causam desconforto e instigam estigmas. Tratam-se, em grande medida e com raras exceções, de lugares e memórias relacionados a grupos marginalizados, quase sempre vindos de classes subalternas, com baixa escolaridade, sem acesso à imprensa ou a meios de comunicação. Esses indivíduos povoam (ou povoaram) os hospitais psiquiátricos e os leprosários, as Penitenciárias e os Reformatórios.

No que tange aos processos de patrimonialização, os sentidos dos usos originais desses espaços dificilmente são levantados e raramente são acionados para pensar seu potencial histórico-patrimonial para além de questões ligadas aos aspectos arquitetônicos. É possível ressignificar tais experiências e lugares como parte de uma memória ligada ao internamento/confinamento e assim percebê-los a partir de valores patrimoniais, como heranças culturais? Ou como heranças incômodas?

Para saber mais:

  • BORGES, Viviane. Como a História Pública pode contribuir para a preservação dos patrimônios difíceis? In: MAUAD, Ana; SANTHIAGO, Ricardo; BORGES, Viviane. Que história pública queremos? São Paulo: Letra e Voz, 2018a.
  • BORGES, V. MENEGUELLO, C. Patrimônio, memória e reparação: a preservação dos lugares destinados à hanseníase no estado de São Paulo. Patrimônio e Memória, UNESP, São Paulo, ano 2018, v. 14, n. 2, p. 345 – 374, 20 mar. 2018.
  • BORGES, Viviane. Como a História Pública pode contribuir para a preservação dos patrimônios difíceis? In: MAUAD, Ana; SANTHIAGO, Ricardo; BORGES, Viviane. Que história pública queremos? São Paulo: Letra e Voz, 2018a.
  • BORGES, Viviane. Carandiru: os usos da memória de um massacre. Revista Tempo e Argumento, vol. 3. 2016.

Patrimônio Prisional

A noção de “patrimônio carcerário” ou “patrimônio prisional” encontra-se ainda em construção. O termo nasce na França, marcado pelos desafios que cercam a elasticidade adquirida pelo conceito de patrimônio cultural a partir dos anos 1990. A configuração dessa nova categoria patrimonial vem ocorrendo nos últimos dez anos, motivada pelas sucessivas destruições de edificações prisionais francesas e por tentativas de debates públicos envolvendo a participação de historiadores e pesquisadores ligados ao patrimônio. A partir dos anos 90 é possível observar a patrimonialização de espaços prisionais, alguns destes se transformaram em museus, memoriais ou centros de visitação, em parques históricos e nacionais. No Brasil, algumas instituições têm sido criadas como o Museu do Cárcere da Ilha Grande (2009), o Memorial da Resistência em São Paulo (2009), o Museu Penitenciário do Estado do Rio de Janeiro (2011), o Museu Penitenciário Paulista (2014) e o Museu Penitenciário Frei Caneca (2017).

Nos últimos anos percebemos um movimento que intenciona tornar estes espaços lugares de reflexão a respeito do sistema penitenciário. De forma geral, há uma tensão entre a realidade prisional e narrativas constituídas para seduzir o público. Nos Estados Unidos, por exemplo, país que lidera o ranking mundial em número de presos, as tentativas de usar os espaços de memória prisional para criticar e humanizar o sistema penal, caminham juntamente com estratégias caricatas de espetacularização (como atrações assombradas em dias e halloween), que contribuem para a ausência de reflexão e esvaziamento de sentidos (BORGES, 2018). De forma geral percebemos dois caminhos emblemáticos. Em alguns casos, a violência ocorrida no passado é suprimida ou apresentada aos olhos dos visitantes como um fato excepcional e distante do presente. Em outros, a transformação de prisões em monumentos reforça a separação entre a vida intra e extramuros, com seus estigmas e separação entre os mundos da ordem e da desordem.

Uma das escolhas dentro do processo de patrimonialização das prisões é pautada pela história política e pela história dos direitos civis e da violência de Estado. Museus e memoriais voltados para a denúncia de mortos e desaparecidos por regimes fascistas e ditatoriais, constituem um ramo importante dos patrimônios em questão, embora nem sempre ocupem instalações de centros prisionais. De arquivos e museus do Holocausto no pós-guerra aos diversos memoriais às vítimas das ditaduras militares na América Latina, essas são instituições voltadas para a memória das vítimas da repressão e para um imperativo político, social e ético que se coloque em prol da liberdade, da justiça e da democracia. Nesta seara, a memória pública relacionada aos presos e as prisões comuns nos leva a outros contornos, ou seja, aos jovens, negros ou mestiços, pobres, com pouca ou nenhuma escolaridade, analfabetos, sem acesso à imprensa, à justiça, ou aos espaços de participação política, que são lembrados pela sociedade extramuros quando a violência das rebeliões invade os telejornais (SANTOS, 2013).

Assim, um desafio relacionado à constituição dos novos patrimônios prisionais é o de proporcionar uma maior reflexão sobre as políticas penais existentes, que são em sua grande maioria ineficazes tanto no seu objetivo de retornar o indivíduo que cumpre pena ao convívio social, como em evitar estigmas e reincidência criminal. A manutenção das prisões vale-se da crença difundida de que o mal está contido no seu interior, o que permite que aqueles que estão em liberdade se identifiquem com o bem, reforçando estereótipos e preconceitos. Há, portanto, a questão de como evitar celebrar a violência e transformação dos antigos presídios em casos excepcionais e objetos de consumo da indústria de turismo. Como não há contemporaneamente um consenso sobre políticas de encarceramento, que ainda são responsáveis por práticas de maus tratos e humilhação, observamos em muitos casos uma tentativa sistemática de apagamento de traços do passado. Das prisões nada se quer guardar. Assim, se não há políticas de encarceramento, não há políticas patrimoniais claras a respeito desta tipologia tão específica de patrimônio.

No Brasil, por exemplo, complexos penitenciários reconhecidos por terem sido palco de chacinas e violações humanitárias de toda ordem, como Instituto Penal Candido Mendes (1994), Carandiru (2002), e Complexo Frei Caneca (2007), têm sido sistematicamente destruídos com cobertura midiática para simbolizar a chegada de uma nova era, a qual, contudo, não se fez ainda presente. Espetáculos de destruição destes complexos promoveram uma catarse política ao permitir a manutenção do duplo sentido da instituição sem que houvesse qualquer responsabilidade coletiva pela miséria humana produzida. (SANTOS 2012). Mesmo nos casos de preservação do patrimônio prisional, é necessário cuidar para que os múltiplos sentidos inerentes à arquitetura e às marcas das práticas encontradas no sistema prisional, como escritas murais, armas e utensílios produzidos artesanalmente, cartas e códigos inventados para permitir a comunicação intramuros, não sejam apagados.

Tais discussões possibilitam que a função original destes espaços siga imbricada aos sentidos históricos e patrimoniais a eles atribuídos, contribuindo para a desestigmatização dos sujeitos confinados, para que sobre a prisão se reflita e se discuta. A categoria patrimônio prisional abarca não apenas as edificações, mas também a complexidade dos aspectos imateriais que as cercam. A dimensão imaterial da experiência prisional, as rotinas e as práticas institucionais, inscritas nas memórias dos sujeitos envolvidos no cotidiano prisional: os detentos, seus familiares e os que lá trabalham. Engloba ainda a necessidade de preservação dos acervos prisionais em seus diferentes suportes (documentais, objetos tridimensionais, fotográficos etc.), incluindo aqui os objetos apreendidos, as criações proibidas dos sentenciados, vestígios por estes deixados durante o período de reclusão. A ausência de políticas públicas voltadas a preservação deste patrimônio alimenta o desinteresse por parte de grande parte das instituições em preservá-lo, ocasionando a perda de fontes fundamentais para pensar a história das prisões no Brasil e suas especificidades nos diferentes estados brasileiros.

BORGES, Viviane Borges. SANTOS, Myrian Sepúlveda dos. Patrimônio prisional. In: CARVALHO, Aline. MENEGUELLO, Cristina. Dicionário temático de patrimônio. Capinas, SP: Editora da UNICAMP, 2020.

Patrimônio Hospitalar

Os hospitais têm uma longa história, conforme aborda Michel Foucault em seu estudo clássico publicado na obra Microfísica do Poder (2000). No Brasil, a história hospitalar também é antiga, compreendendo um período que inicia com a tradição lusa de assistência, através das Irmandades de Misericórdia e se estende até sua transformação em espaços de cura e controle das doenças ao longo do século XX e XXI. Quanto à preservação dos hospitais, os processos no Brasil são mais recentes, diferentemente de países como a França, Portugal e Espanha, que tem alguns de seus hospitais inscritos na lista do Patrimônio Mundial da Unesco. A França, por exemplo, de quem herdamos um modelo público de preservação patrimonial através de inventários, apresentava já em 1840, na primeira lista dos monumentos históricos, a inscrição do l’hôtel-Die d’Angers entre os bens a serem preservados (Perrin; Schœnstein, 2017).

Portanto, o tema não constitui exatamente uma novidade entre os franceses, que também, desde 1958 mantém a Sociedade Francesa de História dos Hospitais que propõe inventários e trabalha para e valorização do patrimônio ligado a essas instituições. A ideia de um uso mais generalizado da expressão patrimônio hospitalar, ao menos no Brasil, é mais recente e obedece a expansão tipológica que o patrimônio vem sofrendo e está, ao menos recentemente, muito associada à expansão da própria noção de patrimônio cultural e “a possibilidade de memórias dissonantes e marginalizadas, emergirem, relacionadas a objetos, edificações e lugares que demandam reconhecimento” (Bauer, Borges, 2018). .Tal perspectiva atende a demandas sociais ligadas ao entendimento da importância histórica dos espaços hospitalares, seja do ponto de vista científico, expressando uma concepção científica de uma época, seja político, como resultado de ações estatais, ou social, com consequências diretas para uma comunidade, não devem ser esquecidos, mas preservados, analisados, compreendidos e inseridos em narrativas históricas (Borges, Serres, 2013).

A definição, porém, não resolve os desafios atrelados a esse tipo de patrimônio, tratam-se de referenciais, conforme destacam Costa e Sanglard (2019) que suscitam sentimentos tão negativos ou contraditórios nos grupos a ele relacionados. Como conceber lugares como antigos hospícios, sanatórios, leprosários, que ao mesmo tempo e para diferentes grupos tiveram diferentes significados, como locais de cura, de morte, fracasso ou sucesso das práticas médicas, isolamento, segregação. Os hospitais carregam a contradição inerente de serem a um só tempo espaço de vida e de morte. Talvez nesse aspecto resida um dos pontos difíceis de sua patrimonialização tomada de forma complexa, não apenas considerando os aspectos de sua arquitetura. Porém, as políticas de preservação ligadas ao patrimônio hospitalar em muitos casos ainda se encontram atreladas “a uma definição tradicional de patrimônio, entendido como uma herança cultural benevolente ligada principalmente à memória arquitetônica e seus belos exemplares” (BORGES, 2018). Neste sentido, observam-se vários exemplos de edificações hospitalares tombadas unicamente em função de sua arquitetura exemplar, compondo dossiês que pouco ou nada mencionam sobre a função original dos lugares, seus usos, doenças a ele associadas, práticas de saúde neles desenvolvidas.

Outra característica que torna os hospitais potencialmente patrimonializáveis, radica na própria obsolescência de suas estruturas com a evolução das técnicas e práticas médicas, tornando determinados edifícios desaconselhados para o uso relacionado à saúde, colocando à sociedade a questão da necessidade de pensar novos usos. Nesse sentido, entender as instituições hospitalares como patrimônios culturais é algo muito recente entre arquitetos, historiadores, museólogos e demais profissionais “da memória” e “do patrimônio” (Borges; Serres, 2013). A noção de patrimônio hospitalar pode ser compreendida no conjunto e como parte do chamado patrimônio cultural da saúde, definido como “um conjunto de bens materiais e simbólicos socialmente construídos, que expressam o processo da saúde individual e coletiva nas suas dimensões científica, histórica e cultural” (TERMO…).

Certamente o valor arquitetônico é parte significante do patrimônio cultural, contudo, entrelaçar a função original desses espaços aos sentidos históricos e patrimoniais a eles atribuídos pode contribuir a desestigmatização. O que atentamos aqui é para que as políticas de preservação pensem a respeito da memória dos sujeitos que passaram por esses lugares hospitalares de internamento, valorizando o caráter histórico e arquitetônico desses espaços em função de seus usos ordinários. Neste sentido, cabe citar o exemplo pioneiro de São Paulo, onde os antigos hospitais colônia, espaços conhecidos como leprosários, criados entre 1920 e 1940, foram todos sujeitos a estudos de tombamento. “O objetivo geral foi preservar os antigos asilos colônia não como exemplares isolados, mas como marcas de uma prática que definiu o território do interior do estado bem como as formas de percepção e de profilaxia da doença” (Borges, Meneguello, 2018, p. 353). O tombamento nesse caso, não exclui a função a eles designadas, não são apenas exemplares de uma tipologia, são edificações relacionadas a um tipo de prática médico-social. A noção de patrimônio hospitalar, portanto, não pode ser concebida fora dos quadros de sua utilização, das quais o edifício é testemunha. Uma boa preservação passa por guardar memória da instituição como um todo. Como se busca a humanização na saúde, para o patrimônio hospitalar é importante partilhar dessa concepção, aos edifícios, uma história e muitos sujeitos.

BORGES, Viviane Borges. SERRES, Juliane. Património Hospitalar.. In: CARVALHO, Aline. MENEGUELLO, Cristina. Dicionário temático de patrimônio. Capinas, SP: Editora da UNICAMP, 2020.

Acervos de Interesse

O AM tem interesse nos registros e vestígios que serviam para regular o fluxo de objetos e de pessoas dentro de instituições de confinamento, destinados a melhor conhecer e controlar comportamentos. Para além do acervo de prontuários da Penitenciária de Florianópolis, listamos aqui alguns acervos de instituições de interesse às temáticas do projeto.

Acervo de Prontuários - IDCH/ UDESC

O acervo de prontuários de detentos da Penitenciária de Florianópolis ( 1930 – 1979) foi doado para o  IDCH em 2013, garantindo a salvaguarda de uma documentação que permite o estudo da história do crime, das práticas institucionais e das instituições no Estado de Santa Catarina. Constitui-se um dos raros exemplos de acervos sequenciais de registro de presos. O trabalho de salvaguarda do acervo tem apoio das ações do AM.